quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Teologia Acadêmica e Teologia Prática... Rivais ou aliadas?

Em ambientes eclesiásticos, existe uma tendência crescente em se separar o pensamento teológico da prática cristã no mundo.

De um lado, permanecem os “teóricos”, cuja principal missão seria salvaguardar o conhecimento teológico desenvolvido pela tradição cristã durante os vários séculos da Igreja; enfatiza-se o academicismo (às vezes, exagerado) que tem sua própria linguagem e postura. De outro lado, surgem os “práticos”, cuja principal característica seria a não dependência de teorias “frias e paralisantes”, que, segundo se afirma, seriam verdadeiros empecilhos à evangelização do mundo. Ambos os grupos trocam mútuas acusações, enquanto, pretensiosamente, apresentam-se como defensores da “fé pura neo-testamentária”.

Será que não é possível estabelecer um meio termo entre essas duas posturas antagônicas? Para John Wesley, por exemplo, entre o ministério prático e a teologia acadêmica precisa haver uma relação geradora de vida. Não basta apenas conhecer os dogmas cristãos; é preciso também vivê-los! Em outras palavras, é necessário percorrer um caminho teológico bem definido, a saber: 1) aprender a teologia (isto é, ouvir o que já foi proposto anteriormente); 2) fazer teologia (questionar o que foi ouvido à luz das necessidades atuais); e, 3) em celebração, viver a teologia (isto é, praticar a teologia de maneira a inseri-la no cotidiano da comunidade).

Este processo exige do teólogo o encarnar-se em sua própria cultura, não permitindo que sua linguagem, escondida numa alta torre e isolada do mundo lá fora, sirva apenas para a elaboração de dogmas complexos que, na verdade, nada têm a dizer aos seres humanos concretos que existencialmente experimentam a vida. Em outras palavras, é necessário desenvolver a consciência de que a teologia só tem sentido se responder às questões de nossas comunidades de fé. Como disse Lutero, “o teólogo se faz vivendo!”.

Por outro lado, não se deve negar a necessidade dos dogmas cristãos nem da teologia que os sustenta e desenvolve. Dogmas teológicos são, nas palavras de Paul Tillich, a expressão de uma “realidade específica, a realidade da igreja”. Isso quer dizer que os dogmas sinalizam (ou, ao menos, deveriam sinalizar) a vitalidade da igreja em sua relação com o mundo que a cerca. Os dogmas tratam, na verdade, de “expressões profundas e maravilhosas da verdadeira vida da igreja”,que relacionam sua piedade, devoção e crenças. São, portanto, vivos em sua dimensão dupla de teoria e praxis.

Somente assim, a teologia cristã pode servir (diaconia) ao mundo que a cerca, ao mesmo tempo em que anuncia a chegada do Reino de Deus. Perguntas sem respostas geram ressentimentos naqueles que as fazem. Se a Igreja não sabe dialogar com a cultura na qual está inserida, e nem responder a seus questionamentos, como poderá anunciar o amor de Deus aos homens? Vale lembrar que os primeiros cristãos não eram motivados em sua missão pela necessidade de se “elaborar conceitos teológicos”; seus escritos eram circunstanciais, e, como tal, respondiam às reais necessidades dos seus ouvintes.

Quando a Igreja encarna sua missão dessa maneira – aliás, esta é a maneira de Cristo! – a resposta dos ouvintes da mensagem é positiva: “O que faremos?” (At 2.37). Em outras palavras, diante da mensagem de Jesus como aquele em quem a profecia do Messias se cumpre e aquele em quem a esperança das pessoas repousa, como devemos agir? Ora, essa é a resposta que a evangelização integral deve encontrar. E esta também é a resposta que uma teologia, que integra em sua vivência a teoria e a praxis, irá gerar.

Ainda que haja muita discussão sobre a Eucaristia (discussões válidas,com certeza), o fato é que Cristo instituiu seu memorial com coisas simples – o pão e o vinho – extraídas do cotidiano de seus ouvintes. Nada mais longe de seu Espírito do que separar tais elementos da vida pela teorização acerca deles; e nada mais longe da Sua vontade do que impedir que os cristãos, sejam estes teológos profissionais ou não, pensem sobre eles. Pensar e agir, portanto, são faces da mesma moeda e não devem nunca ser separados um do outro.

Soli Deo Gloria.

Jesus: messias-guerreiro ou messias-pastor?

A tradição messiânica no interior do Judaísmo sempre esteve ligada à ascenção de Davi como rei. Esta história foi sendo lida a partir de dois pontos de vista distintos: um, é a tradição que surge do campo, relacionada a imagem de um Davi pastor, que vence os seus inimigos pela confiança em Javé, e não pela própria força. Outro, é a tradição palaciana, na qual a monarquia já está estabelecida, e Davi é encarado muito mais como um guerreiro, um rei-militar, que anexa territórios ao reino de Israel pela força de seus exércitos.

Com chegada de Davi ao trono, o termo messias (maschiach, no hebraico) passou a se referir exclusivamente ao Rei. Na verdade, a presença da Arca de Deus em Jerusalém serve para qualificar o Reinado de Davi como autêntico e aprovado por Javé. De um jovem pastor, inexperiente, Davi passou a ser visto como rei, poderoso e forte. Esta será a imagem do Messias que, para todos os efeitos práticos, vigora na época de Jesus.

Isso importa porque, a partir destas imagens, surgiram no interior do Judaísmo duas tradições mssiânicas. Primeiro, temos um Messias Militar, com um caráter fortemente bélico. Trata-se de um messias que vem para reinar e devolver a Israel a glória da monarquia, livre de opressores estrangeiros. Esta expectativa está presente em diversos salmos. O SALMO 2, por exemplo, apresenta determinadas características relativas a este tipo de messianismo. Primeiro, o salmista deixa claro que tipo de relação deve existir entre o messias e os povos: estes devem obediência e submissão àquele. O fato, por exemplo, do Salmo 2 possuir como contexto a cerimônia da entronização do Rei, é um indício de sua utilização como elemento repressor de motins contra seu Reinado. A conseqüência disso, em segundo lugar, é que existe uma relação íntima entre o messias e o próprio Javé. A partir dessa constatação, o salmos lido compreende que quaisquer tentativas de afrontar ao messias são, na verdade, tentativas de insurreição contra Javé. Tal relação fornece ao messias-rei uma posição de autoridade que não poderia, em princípio, ser questionada.

Esta noção aparece também em textos apócrifos. Um trecho dos Salmos de Salomão pede a Deus:

“Desperta-lhes um rei, o filho de Davi (...) cinge-o com o teu poder de modo que aniquile os tiranos ímpios e purifique a Jerusalém dos pagãos que a mancham com seus pés (...) Então ele reunirá um povo santo que ele governará com eqüidade, e julgará as tribos do povo santificado pelo Senhor seu Deus, e dividirá entre eles o país, e os estrangeiros não terão o direito de habitar no meio deles (...) O Rei [MESSIAS] tornará Jerusalém pura e santa como era no começo!”

A outra tradição messiânica surge do campo, e está relacionada à figura de um messias pastor. O profeta Isaías (Is 6.1 – 9.7 e Is 11.1-9), o profeta Miquéias (Mq5.2-5) e o profeta Zacarias (Zc 9.9-10) defendem esta tradição. Há, nesses textos, uma ruptura com a imagem do Messias proposto pela monarquia. O reinado do Messias não será pela força (bélico), mas sim pela paz: trata-se, aliás, de um Messias-menino que trará um reino de paz, justiça e direito (Is 9.6-7). O messias-menino marca o início de um novo tempo para Judá. Além disso, o messias-menino será guiado pelo Espírito de Javé, de sabedoria e inteligência, e não pelo poderio militar (Is 11.1-6).
Miquéias também compreende assim a vinda do Messias, incorporando outra imagem importante: o messias que vem é um pastor, isto é, aquele que cuida, apascenta, alimenta e protege suas ovelhas. Longe de ser um messias militar, que governará pela força, o messias esperado por Miquéias governará pela força de Javé, e esta atuação pastoral trará paz à terra. (Mq 5.2-5)

Zacarias,por sua vez, reproduz essas expectativas, falando da vinda de um Messias pobre, que vem como fonte de liberdade e alegria (Zc 9.9-10). O Messias de Zacarias é justo – sua justiça é evidenciada no cuidado com os pobres. O Messias é pobre (humilde), pois é aquele que revela que Deus assume a defesa dos oprimidos para libertá-los.

E quanto a Jesus? Que tipo de Messias os escritores do NT apresentam em suas páginas? E o próprio Senhor? Com qual tradição messiânica ele se identificava?

Para os evangelistas, o Cristo que veio está relacionado a esta tradição de um messias pastor. Mateus relê Isaías e Zacarias, aplicando o teor de suas profecias a Jesus (Mt 1.18-25; 21.1-11). Já João apresenta a função do Messias no Novo Testamento como pastoreio: Jesus é o bom pastor, que cuida e dá a sua vida pelas suas ovelhas (Jo 10).

Jesus também escolheu esta tradição. Percebendo que o título Messias trazia para os judeus conotações políticas – isto é, o Messias, pela força, libertaria Israel do poderio de Roma – Jesus decide, conscientemente, rejeitar qualquer proposta nesse sentido. Na tentação do deserto, por exemplo, a possibilidade de tornar-se este messias militar é enfaticamente recusada. A oferta de Satanás (“Se me adorares, tudo isto será teu”) continha exatamente a expectativa que o Judaísmo esperava do Messias: “ter a glória dos reinos” (Mt 4.8-10). Em outras palavras, era a tentação de assumir este papel político de conquista pela força. Jesus recusa veementemente este título de Messias como líder político revolucionário. Ele decide ser um messias mais humano!

Falar de um Messias aparentemente fraco – e, conseqüentemente, de uma comunidade que o segue – incomoda muitos que não conseguem aceitar a idéia de um Messias pastor. Mas é justamente essa figura que mais se aproxima do ministério de Jesus. Ele cuida de suas ovelhas, e mais: as conhece pelo nome. Ele as enxerga como pessoas que estão cansadas, sobrecarregadas e oprimidas, e a elas, Ele oferece seu fardo que é leve e suave.
Resta saber se nós, seus discípulos, também escolheremos esta tradição.